
No universo encantado da infância, cantigas, parlendas e brincadeiras tradicionais são mais do que simples diversões, elas são portais que levam as crianças a terem contatos iniciais junto ao mundo do saber. Essas atividades lúdicas, transmitidas de geração em geração, desempenham um papel crucial na alfabetização, tornando o aprendizado da leitura e da escrita uma jornada prazerosa e envolvente. Ao entoar melodias e recitar rimas, as crianças não apenas aprendem as “musiquinhas” que cantam e encantam seus pais e responsáveis, mas, sobretudo, desenvolvem a linguagem oral, aprimoram a consciência fonológica e mergulham no mundo das letras de forma natural e divertida.
E para falar sobre o tema cantigas, parlendas e brincadeiras no processo de alfabetização, neste e-book, a Revista Educar convidou Cristiano dos Santos, Psicopedagogo e especialista em inteligência socioemocional, Mestre em Educação, Escritor, Músico e colaborador da Aliança pela Infância.
Cristiano começou tratando do assunto já colocando sua opinião sobre a importância das cantigas, parlendas e brincadeiras no processo de alfabetização e como esses elementos lúdicos podem auxiliar no desenvolvimento da linguagem oral, da consciência fonológica e do aprendizado da leitura e da escrita. Segundo ele, a aprendizagem com significado precisa passar pela experiência prática. E Cristiano continua afirmando que a criança assimila o mundo por intermédio do brincar em todas as suas manifestações e, nesse contexto, as cantigas e as parlendas desempenham um papel fundamental. “Quase sempre, a família é o primeiro ambiente a proporcionar o contato com essas manifestações, o que constrói na criança uma relação afetiva com essas possibilidades lúdicas.”.
Durante o período de alfabetização e letramento, na perspectiva do especialista, ao utilizarmos essas formas de linguagem, aproximamos afetivamente a criança do interesse pela descoberta do mundo letrado, um lugar do qual ela faz parte desde os seus primeiros dias de vida. “As canções da infância carregam em si elementos culturais e palavras simples, de fácil assimilação. Em algumas delas, há ainda a repetição de fonemas, o que favorece a escuta, a repetição e, consequentemente, a internalização de maneira lúdica, social e eficaz”, frisa garantindo que, ao se interessar, a criança passa a reproduzir essas palavras e sons espontaneamente. “Utilizar essas manifestações no processo de exploração da leitura e da escrita é, sem dúvida, construir um ambiente favorável e envolvente para o aprender”, pontua.
Não é novidade que, se tem algo que o ser humano consegue assimilar bem, são os ritmos sonoros, sejam eles os das chamadas de jingles, slogans, parlendas ou cantigas curtas e marcantes. Dentro desse cenário, a parlenda se apresenta como um forte elemento de “compasso e ressonância” que podem contribuir para a memorização de padrões sonoros e ritmos, facilitando a aquisição da leitura e da escrita. A palavra “parlenda” significa “falar muito”, e tem origem no latim, derivada da palavra “parlare”, explica Cristiano. “Esse é o principal motivo de sua efetividade na memorização, pois sua cadência, a repetição de rimas e a estrutura musical simples e envolvente favorecem uma relação social e a aprendizagem em grupo, já que as parlendas são recitadas coletivamente”, declara.
O mestre em educação destaca também que, ao recitá-las repetidamente, as crianças aprimoram sua capacidade de reconhecer padrões linguísticos, o que contribui para o desenvolvimento gradual da consciência fonológica. Esse processo, organizado de forma intencional pelos educadores, favorece a aquisição da leitura e da escrita de maneira lúdica e eficaz.
Além das habilidades intrínsecas na alfabetização, as cantigas, parlendas e brincadeiras também contribuem para o desenvolvimento de outras habilidades importantes no processo de alfabetização, conforme enfatiza Cristiano dos Santos, pontuando que uma das habilidades mais importantes para o desenvolvimento social e da aprendizagem é a competência socioemocional, que pode ser dividida em cinco grandes macrocompetências:
Conforme ilustra, essas competências, quando bem trabalhadas, favorecem o autoconhecimento e ajudam a criança a reconhecer e aceitar o outro dentro de suas possibilidades, valorizando a diversidade. Dessa forma, a escola se torna um ambiente favorável à inclusão e às novas descobertas sobre si mesma e sobre o outro. “Ao desenvolver habilidades socioemocionais, a criança compreende a importância de engajar-se socialmente, aceitar seus erros iniciais e continuar tentando, o que é essencial para a aquisição de novos conhecimentos. A descoberta do novo exige, acima de tudo, autogestão, que envolve responsabilidade e o reconhecimento de que a própria evolução depende dela mesma. Assim, essas competências ajudam a construir os quatro pilares essenciais para a educação, propostos por Jacques Delors” (veja o quadro abaixo). Ainda de acordo com seus conhecimentos, desenvolver essas habilidades desde cedo contribui para uma formação integral, preparando a criança não só para os desafios acadêmicos, mas também para as demandas sociais e emocionais que encontrará ao longo da vida.
Ao abordar o assunto, ele menciona que as brincadeiras coletivas geram interesse em grupo e despertam a vontade de conquistar objetivos coletivos, engajando os alunos em seu desenvolvimento. Além de serem uma manifestação lúdica, essas brincadeiras favorecem relações sociais e a descoberta de novas amizades, promovendo socialização e colaboração, essenciais para um ambiente saudável de aprendizagem. “Ao participarem dessas atividades, as crianças exercitam a comunicação verbal, a escuta ativa e o respeito às regras, habilidades fundamentais para o processo de alfabetização. Dessa forma, as brincadeiras coletivas não apenas fortalecem os laços sociais, mas também estimulam o desenvolvimento linguístico, ampliando o vocabulário e aprimorando a compreensão oral e escrita”, revela.
Um outro ponto de grande impacto no processo de alfabetização a partir do apoio das cantigas, parlendas e brincadeiras são exatamente os desafios enfrentados pelos educadores ao incorporar elementos da cultura popular em um currículo escolar formal. Para Cristiano, um dos principais desafios do educador é oferecer cantigas e parlendas para além do contexto de ensino de conceitos, incorporando-as ao cotidiano como forma de brincar e, assim, naturalizando sua utilização e constância. Mas não param por aí a observação e a advertência do professor. “Outro ponto importante é que muitos professores não se sentem à vontade com a linguagem musical e, por isso, acabam a utilizando de forma mecânica e sem o encantamento necessário para que as crianças percebam nela uma possibilidade de divertimento”, relata o professor e músico, que continua destacando, sob seu ponto de vista, os impasses que podem retardar ou comprometer o processo.
“Há também o terceiro desafio, que é a crença de que a alfabetização só acontece por meio da massificação de atividades escritas e da repetição de fonemas e grafemas. Isso torna o processo maçante e distante do prazer, fazendo com que a criança encare a alfabetização apenas como uma exigência acadêmica, descontextualizada de sua realidade e de seus interesses. É fundamental lembrar que brincar é a primeira e principal linguagem da criança. Antes mesmo de andar, ela já se relaciona ludicamente com seus familiares e com o ambiente ao seu redor”, adverte.
Muitas vezes pais e responsáveis desconhecem o potencial das brincadeiras e as usam apenas como momento de entretenimento e diversão no seio familiar. Entretanto, o que os especialistas argumentam é que a educação parental deve ser um imperativo, pois, ao se envolver no processo de aprendizagem, a família mostra à criança a valorização e a importância do aprender. “Tenho uma pequena história para ilustrar isso:
Minha mãe era analfabeta, mas, sempre que eu me sentava para fazer uma atividade enviada pela escola, ela se sentava ao meu lado e passava seus dedos sobre a escrita, me acompanhando com atenção. Na época, eu não tinha a dimensão de que ela não sabia ler, pois ela fazia leitura de imagem e interagia comigo, o que fez com que eu me interessasse em fazer as atividades. Esses momentos eram agradáveis e marcaram minha memória de forma muito positiva”, revela Cristiano.
Acompanhar o filho durante a realização das atividades escolares é um modo de valorizar e auxiliar na construção do conhecimento, transformando o momento em um contexto de aprendizagem significativo. “Da mesma forma, cantar cantigas que estão sendo trabalhadas na escola, ou outras, é uma maneira de criar um ambiente educador e envolvente, fortalecendo a aprendizagem de forma lúdica e afetiva”, justifica.
Quais os desafios e dificuldades que os professores podem enfrentar ao utilizar cantigas, parlendas e brincadeiras em sala de aula? Como superar esses obstáculos e garantir que esses recursos sejam utilizados de forma eficaz no processo de alfabetização? O mestre em educação deixa muito claro que o desafio está na aceitação de que o ambiente de aprendizagem nem sempre significa silêncio. Pois, na sua opinião, o barulho pedagógico pode, muitas vezes, incomodar e perturbar os professores, mas faz parte do processo de construção do conhecimento.
“Além disso, a utilização da linguagem dentro de um contexto estruturado é essencial. Deve-se aplicá-la de forma planejada, atrelando as propostas ao objetivo de aprendizagem que está sendo explorado. Saber exatamente o que se deseja desenvolver na criança é o ponto central para garantir uma utilização eficaz desse recurso. Por isso, o planejamento pedagógico é fundamental para dar clareza aos objetivos e, ao mesmo tempo, reduzir possíveis desconfianças sobre a relevância do trabalho com essa abordagem. Quando bem estruturada, essa prática se torna intencional, significativa e indispensável para o desenvolvimento infantil”, assegura o psicopedagogo e especialista em inteligência socioemocional.
Não podemos perder de vista que, mesmo diante dos inúmeros desafios familiares e pedagógicos, em um mundo cada vez mais digital, as cantigas, parlendas e brincadeiras continuam sendo recursos essenciais no processo de alfabetização. Além de ultrapassarem o ensino formal, essas práticas fortalecem a memória, estimulam a socialização e estreitam os laços entre família e escola, tornando a aprendizagem mais envolvente e significativa.
Por Antônia Figueiredo
*Cristiano dos Santos é psicopedagogo e especialista em inteligência socioemocional, Mestre em Educação, escritor, músico,? palestrante, membro do grupo de pesquisa Africanidade (UFABC), membro e colaborador da Aliança pela Infância, coordenador pedagógico do Grupo Conectar, assessor de conteúdo de corpo e movimento da “Coleção Palavra Cantada na Escola” e autor do livro “Brincaletrando – Músicas para brincar e aprender” | Instagram: @cristiano.borabrincar.